A Reforma Tributária, consubstanciada na Emenda Constitucional nº 132/2023, promulgada em dezembro de 2023, insere-se num contexto de modernização do sistema fiscal do país, com o objetivo de simplificação, racionalização e aumento da eficiência arrecadatória. Em janeiro de 2025, foi aprovada a primeira legislação para regulamentá-la, a Lei Complementar nº 214/2025, que, em tese, materializa os objetivos centrais de simplificar e unificar o Sistema Tributário Nacional, com a instituição de novos impostos de competência compartilhada e a criação de um órgão responsável pela administração, arrecadação, compensação e distribuição do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) entre Estados, Distrito Federal e Municípios.
Embora não tenham ocorrido modificações literais na legislação penal, notadamente na Lei 8.137/1990, esse processo de reforma tributária possui implicações diretas no âmbito do direito penal, sobretudo no que se refere aos Crimes Contra a Ordem Tributária e Econômica. A intersecção entre direito penal tributário e reforma fiscal exige atenção, uma vez que alterações no sistema de tributos podem impactar a própria tipificação do crime, a fiscalização, a persecução penal e, consequentemente, a atuação do Ministério Público.
Atualmente, a Lei 8.137/1990 regula e define os Crimes Contra a Ordem Tributária, Econômica e Contra as Relações de Consumo, com destaque para condutas como: omitir ou prestar informações falsas ao Fisco, suprimir ou reduzir tributo ou contribuição social, fraudar a fiscalização tributária, e falsificar ou alterar Nota Fiscal, dentre outras. Para que haja a constituição do crime, é necessária a existência de um lançamento definitivo do crédito tributário, condição de procedibilidade para a ação penal, conforme pacificado pela Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal (STF).
Todavia, destacam-se críticas ao modelo vigente, entre as quais: (i) a utilização do direito penal como forma de coação para o pagamento do tributo — e não apenas de proteção de bens jurídicos essenciais; (ii) a dificuldade de delimitar a responsabilidade e autoria delitiva em grandes operações tributárias; e (iii) a insegurança jurídica decorrente da complexidade normativa, que afeta a previsibilidade da conduta criminosa.
Assim, o direito penal tributário hoje funciona como parte de uma engrenagem que combina fiscalização tributária, sanção administrativa e intervenção penal quando a infração adquire gravidade suficiente.
Nesse cenário, com as modificações realizadas pela Reforma Tributária nos deparamos com algumas lacunas e discussões jurídicas de imediato. Vejamos.
1. Legalidade Estrita – Art. 5, XXXIX, da CF/88
A norma constitucional prevê o princípio da legalidade estrita, exigindo lei anterior que defina cada tipo penal. Com a substituição dos tributos, que funcionam como elementares do tipo, pela LC 214/2025, é possível que surjam discussões sobre a atipicidade da conduta por ausência de previsão legal específica. Na hipótese de se entender pela ausência de correspondência entre a conduta e o novo ordenamento jurídico, poder-se-ia cogitar a ocorrência de abolitio criminis, com a consequente extinção da punibilidade, conforme previsão do art. 107, inc. III, do Código Penal. Nesse sentido, a jurisprudência terá papel crucial na fixação e pacificação de entendimento sobre a matéria.
Entretanto, não obstante a necessidade de reformulação da legislação penal para que esteja em consonância com o novo sistema tributário, a Lei 8.137/1990, ao mencionar que “constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório”, deixa claro que se trata de uma norma penal em branco, ou seja, que carece de complementação por outra norma para ser integralmente aplicada — neste caso, aquela que especifica o tributo e o órgão competente para sua apuração.
Diante disso, considerando que a Lei 8.137/1990 jamais teve a pretensão de elencar, de maneira taxativa ou exemplificativa, tributos em espécie, entendemos pouco provável a extinção da punibilidade por abolitio criminis, devendo prevalecer o princípio da continuidade normativo-típica.
2. Fixação de Competência e Jurisdição Penal Tributária
Outro ponto que merece atenção reside na fixação de competência no momento da fiscalização e instauração de procedimentos criminais decorrentes de obrigações tributárias. Isso se deve ao fato de que, ao reorganizar competências tributárias (por exemplo, entre União, Estados e Municípios), haverá uma redistribuição das responsabilidades de fiscalização e investigação entre as esferas federativas. Não está claro, até o momento, de quem será a competência para a apuração de ilícitos penais relacionados aos impostos de competência compartilhada (o IBS, em especial).
Em que pese a unificação ter como objetivo tornar o sistema tributário mais célere e eficiente, na esfera penal, a falta de clareza sobre como os procedimentos e as fiscalizações serão realizadas, além de gerar insegurança jurídica, pode dificultar não só a apuração dos delitos e o combate à criminalidade organizada, como também o próprio exercício do contraditório e da ampla defesa, garantidos constitucionalmente.
Conclusão
É louvável o esforço do legislador em promover a modernização e simplificação das leis fiscais no Brasil. Contudo, as profundas alterações no sistema tributário geram impactos diretos e significativos no âmbito do Direito Penal Tributário. A intersecção entre o novo arranjo de tributos e a Lei 8.137/1990 levanta questões cruciais, como a possível discussão sobre a tipicidade da conduta, em face da legalidade estrita, e a complexa definição da competência e jurisdição penal, especialmente diante da criação do IBS e da nova administração compartilhada de impostos. Urge, portanto, a necessidade de harmonização da legislação penal à nova realidade fiscal, de modo que, sem as devidas adaptações e clareza nos procedimentos de fiscalização e persecução, os objetivos de celeridade e eficiência da reforma podem ser comprometidos no campo penal, gerando insegurança jurídica e potencialmente dificultando o combate aos Crimes Contra a Ordem Tributária e o exercício das garantias constitucionais de defesa.
14 de outubro de 2025
Lavínia Costa dos Santos