A Lei nº 14.133, de 01 de abril de 2021, contém a disciplina legal sobre licitações e contratos administrativos. Um dos temas de destaque da nova Lei consiste nas regras relativas a crimes em licitações e contratos administrativos.
A partir desse novo cenário normativo, diante da revogação da antiga Lei de Licitações – Lei nº 8.666/1993 -, os Tribunais Superiores, com destaque à atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), têm prolatado decisões significativas no âmbito criminal. Ponderação importante surge quanto à continuidade ou não da existência dos crimes elencados na antiga Lei de Licitações (Lei nº 8.666/1993), especificamente na Seção III – Dos Crimes e das Penas. A perspectiva criminal tem gerado discussões relevantes nos Tribunais a respeito da possibilidade da abolitio criminis de demandas que tratam sobre crimes no âmbito das licitações, diante da revogação da antiga Lei.
O fenômeno da abolitio criminis consiste na causa extintiva de punibilidade devido a revogação formal do tipo penal, acarretando na extinção do crime. Em outras palavras, determinado fato penal deixa de ser considerado crime devido à publicação de lei que extingue o delito anteriormente estabelecido no ordenamento jurídico brasileiro, cessando os seus efeitos penais.
Diante desta conjuntura, o STF decidiu, recentemente1, manter a condenação de réu em um caso no qual houve a prática do crime previsto no art. 89 da antiga Lei de Licitações. De acordo com a Corte, não é possível vislumbrar a abolitio criminis, considerando que ocorreu a continuidade normativo-típica, em razão do crime objeto de discussão continuar sendo fato punível pelo Estado diante do previsto no artigo 337-E na atual Lei de Licitações.
A continuidade normativo-típica trata-se de um fenômeno jurídico que ocorre quando uma lei penal é revogada (Lei nº 8.666/1993), mas a mesma conduta ainda é considerada crime pela nova lei que a substituí (Lei nº 14.133/2021). Significa dizer que o tipo penal continua sendo previsto, embora esteja agora em um artigo diferente ou tenha um tratamento normativo distinto do anterior.
De modo semelhante, o STJ já firmou entendimento2 de que não há o que se falar em abolitio criminis com relação aos crimes da Lei nº 8.666/1993, porquanto houve a continuidade normativo-típica por meio da inserção do Capítulo II-B no Código Penal intitulado “Dos Crimes em Licitações e Contratos Administrativos” diante da nova Lei nº 14.133/2021. Tribunais Regionais Federais (TRFs), tais como o 1º3, 3º4 e 5º5 , têm seguido a interpretação dada pelo STF e pelo STJ ao manter as sanções nas suas respectivas competências.
No entanto, em que pese ter havido a manutenção da maioria dos crimes previstos na antiga lei, a segunda parte do art. 89 da Lei 8.666/936 não está prevista na Lei 14.133/21. Dessa forma, é possível afirmar que não é mais crime deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade da licitação. Não custa observar, no entanto, que a contratação direta ilegal em si segue sendo tipificada (art. 337-E da Lei nº 14.133/2021) e que diversos são os requisitos e exigências legais para que se proceda, regularmente, sob a ótica administrativa, uma correta contratação direta por dispensa ou inexigibilidade de licitação, sobretudo diante das previsões contidas nos artigos 72 a 75 da Lei nº 14.133/2021.
De uma maneira geral, importante pontuar que a nova lei de licitações trouxe penas mais gravosas do que as previstas na antiga lei. Contudo, considerando que, sob o aspecto criminal, ocorre o fenômeno da ultratividade7, serão aplicadas as penas mais brandas da antiga lei aos fatos ocorridos durante a sua vigência, ainda que com o advento da Lei 14.133/2021.
Cumpre destacar, ainda, que houve a previsão de um novo crime, capitulado no artigo 337-O da nova lei, que agora considera fato punível a omissão grave de dado ou de informação por projetista, com a previsão em seu parágrafo §2º de aplicar o dobro da pena se o crime é praticado com o fim de obter benefício, direto ou indireto, próprio ou de outrem.
Pelo exposto, sob a perspectiva criminal, embora a antiga Lei de Licitações tenha sido revogada, é certo que os fatos penais nela anteriormente previstos permanecem considerados como crime pelo advento da nova Lei de Licitações, com exceção da segunda parte do Art. 89 da Lei 8.666/93, em relação ao qual ocorreu a abolitio criminis. E apesar de a nova lei ter estabelecido penas mais severas, é importante destacar que se aplicam as penas mais brandas da legislação anterior apenas aos delitos cometidos durante a vigência da então Lei nº 8.666/1993.
Rodrigo da Fonseca Chauvet
Sócio Responsável pela Área de Direito Administrativo de Trigueiro Fontes Advogados
Natália Miranda Lopes
Advogada da Área Criminal de Trigueiro Fontes Advogados
[1]STF. AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS: HC 225554 AgR/DF. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. DJE 26/04/2023. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur478111/false. Acesso em: 16 set. 2024.
[2] AgRg no AREsp n. 2.073.726/PA, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma. DJE 27/06/2022. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202200479080&dt_publicacao=27/06/2022 > Acesso em 16 de setembro de 2024.
[3] ApCrim, relator Juiz Federal Marllon Sousa, Décima Turma, DJE 22/08/2023. Disponível em: https://pje2g.trf1.jus.br/consultapublica/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/documentoSemLoginHTML.seam?ca=d3d78ed7072012d1d498e738d2b16ffae32850b4a23f5a55ebf7e6d6a48e53b832460d57a2a07eece086f069b324f794e0a102c1e98cbf23 > Acesso em 24 de outubro de 2024
[4] ApCrim, relator Desembargador José Lunardelli, 11ª Turma, DJE 07/10/2022. Disponível em: https://web.trf3.jus.br/jurisprudencia/Home/ImprimirDecisao/?nd=2 > Acesso em 24 de outubro de 2024
[5] ApCrim, relator Desembargador Luis Bispo, Quarta Turma, DJE: 21/05/2024. Disponível em: https://pje.trf5.jus.br/pjeconsulta/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/documentoSemLoginHTML.seam?idProcessoDocumento=ee5321f8e2831d61c69391c05ca7cd13 > Acesso em 24 de outubro de 2024
[6] “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”
[7] Artigo 5º, inciso XXXIX da CF.