Os animais de estimação ocupam um lugar especial na experiência humana, muitas vezes como membros autênticos da família, recebendo cuidado, afeto e atenção comparáveis aos destinados a qualquer outro ente querido. Nesse contexto, no divórcio ou dissolução de união estável de seus tutores, tem sido admitida a guarda compartilhada de animais, em razão da aplicação de novos paradigmas jurídicos.
O Código Civil brasileiro em seu artigo 82, categoriza os animais selvagens, domesticados ou domésticos, tais como cães e gatos, como bens semoventes. Assim, ao definir a natureza jurídica dos animais, a legislação tipificou os animais domésticos como coisas e, por conseguinte, objetos de propriedade, não lhes atribuindo a qualidade de pessoas ou dotado de personalidade jurídica, não podendo, a princípio, serem considerados sujeitos de direitos.
Contudo, o regramento jurídico dos bens, por si só, não vem se mostrando suficiente para resolver de forma satisfatória eventual partilha familiar envolvendo os animais de estimação, visto que não se trata de simples debate atinente à posse e à propriedade, mas sim uma discussão acerca de seres sencientes, que necessitam ter o seu bem-estar considerado.
Nesse aspecto, a jurisprudência tem reconhecido seu valor subjetivo singular, que pode evocar sentimentos únicos em seus tutores. Tal reconhecimento vai além da concepção tradicional de propriedade privada estabelecida pelo Código Civil brasileiro, destacando a natureza especial da relação entre humanos e animais de estimação.
Portanto, em casos de dissolução familiar com disputa envolvendo animais de estimação, parte da jurisprudência prioriza a proteção do vínculo afetivo humano-animal. Tal posicionamento pode incluir direitos de visita e até mesmo a guarda compartilhada dos animais. Destaca-se que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se pronunciou sobre o assunto, garantindo o direito de ex-companheiros visitarem animais de estimação após a dissolução da união estável. No referido processo, o STJ confirmou uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que estabeleceu um regime de visitas para um ex-companheiro conviver com uma cadela yorkshire adquirida durante o relacionamento. Esta decisão foi pioneira e fundamentada na noção de que os animais não podem ser tratados como meros objetos, como hoje a lei estabelece, devido aos laços afetivos estabelecidos entre seres humanos e animais, em respeito à dignidade da pessoa humana.
A atribuição de um valor jurídico a esse vínculo entre humanos e animais de estimação afeta não apenas as percepções sociais, mas também as leis, como é evidenciado pela Lei Federal nº 14.064/2020, que aumentou as penalidades para maus-tratos a cães e gatos.
Na mesma linha, o Projeto de Lei nº 179/23 propõe a regulamentação do conceito de família como multiespécie, reconhecendo a integração dos animais domésticos e seus tutores como parte fundamental desse novo paradigma.
Além disso, tal projeto de lei propõe diretrizes sobre questões como o término da união estável, o divórcio, os pedidos de guarda, a regulamentação de visitas dos animais domésticos e sanções, caso uma das partes não esteja garantindo o bem-estar do animal. Nesse sentido, prevê-se o acompanhamento do magistrado, em conjunto com a Defensoria Pública e o Ministério Público, para avaliar cada caso individualmente e determinar as medidas apropriadas.
Nesse contexto, parte do colegiado entendeu que os animais domésticos não se enquadram estritamente como “coisas” nem “pessoas”, mas sim um "terceiro gênero".
O termo "terceiro gênero" refere-se à categoria que vai além da tradicional distinção entre "coisas" e "pessoas" no âmbito jurídico. Assim, segundo a referida nomenclatura, embora os animais não devam ser equiparados a pessoas, também não devem ser tratados como objetos inanimados, defendendo a necessidade de uma análise individualizada de cada caso para proteger os interesses humanos e o vínculo afetivo entre os seres humanos e seus animais de estimação.
Percebe-se que tal perspectiva transcende a concepção tradicional de propriedade de animais prevista pelo Código Civil. Portanto, o conceito de "terceiro gênero" sugere uma abordagem legal que reconhece a singularidade dos animais e impõe limitações aos direitos de propriedade sobre eles, levando em consideração sua sensibilidade e seu valor afetivo para seus tutores humanos.
Por todo o exposto, é notável a evolução do entendimento jurídico sobre os animais, revelando um crescente reconhecimento de sua natureza senciente, dotada de amor, afeto e sofrimento.
A guarda compartilhada de animais domésticos, portanto, evidencia a tríade da relação entre seres humanos, seus animais de estimação e a tutela dos seus direitos, delineando, assim, uma interconexão fundamental a fim de se garantir o bem-estar de todos os envolvidos. Esse novo paradigma que começa a se desenhar na jurisprudência brasileira demonstra uma sensibilidade crescente às nuances dessa relação especial, transcendendo as limitações do Código Civil e evidenciando a capacidade adaptativa do sistema jurídico diante da evolução dos valores sociais.
São Paulo, 21 de março de 2024.
Daniela Birocchi e Thales Maia Almeida