Diante do crescente avanço tecnológico, a revolução no setor de serviços de entrega e transporte se destaca como um exemplo da transformação digital. O constante aprimoramento destes serviços por aplicativos tem não apenas facilitado a vida dos consumidores, mas também redefinido as relações existentes entre os entregadores e as empresas, trazendo à tona embates jurídicos acerca da natureza da relação de trabalho por trás dessas plataformas, diante da lacuna existente na legislação.
A flexibilidade oferecida aos entregadores, muitas vezes vista como independência, trouxe à tona debates sobre a natureza do vínculo de trabalho. Enquanto alguns veem a liberdade de horários e a possibilidade de aceite e recusa das entregas/transportes como uma vantagem ao trabalhador, outros argumentam pela necessidade de garantir direitos trabalhistas essenciais aos entregadores/transportadores, pois haveria, nessa relação, um efetivo estado de subordinação jurídica e econômica. Essas diferentes visões sobre o mesmo tema têm gerado decisões conflitantes nas diversas instâncias do poder judiciário.
A Justiça do Trabalho possui competência para apreciar e julgar as controvérsias decorrentes das relações de trabalho (artigo 114 da Constituição Federal), sendo esta o gênero da qual o vínculo empregatício é a espécie, o que, nos termos legais, atrai para os tribunais trabalhistas o julgamento de ações que envolvam a relação entre entregadores/transportadores e as empresas de aplicativos.
Neste percurso, que se inicia nas Varas do Trabalho, passando pelo Tribunal Regional do Trabalho e pelo Tribunal Superior do Trabalho, identificamos diversas decisões, algumas reconhecendo o vínculo empregatício outras não, dependendo das provas produzidas nos autos e da interpretação do julgador à luz do enquadramento nos artigos 2º e 3º da CLT.
Contudo, nos últimos meses houve um firme posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, sendo apreciada, no mês de dezembro de 2023, de forma colegiada pela Primeira Turma, Reclamação em que se contestou decisão da Justiça do Trabalho que reconheceu vínculo de emprego de motorista de plataforma de transporte (RCL 60347). O colegiado entendeu que os motoristas de aplicativos de entrega ou de transporte são microempreendedores, pois têm liberdade para aceitar ou recusar corridas e para escolher os horários de trabalho e a plataforma para a qual prestarão serviço, além de poderem ter outros vínculos.
Acrescentaram os ministros que a decisão regional que reconhecia o vínculo de emprego apresentava contrariedade à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que permite formas alternativas à relação de emprego, firmada nos julgamentos da ADC 48, da ADPF 324 e do RE 958.252. Assim, os ministros concluíram pela procedência da Reclamação e improcedência da ação trabalhista, e decidiram ainda remeter para apreciação do Plenário do STF a Reclamação (RCL) 64018, que trata do reconhecimento de vínculo de emprego de um motofretista com plataforma de entregas.
A posição adotada pelo STF vem sendo considerada por muitos como uma interferência do Supremo Tribunal Federal em assuntos que seriam restritos à competência da Justiça do Trabalho, trazendo instabilidade e insegurança às decisões proferidas pela corte trabalhista. Contudo, o fato é que o STF tem a palavra final quando se trata da interpretação dos princípios constitucionais e das competências estabelecidas pela Constituição, e deve zelar pela correta e uniforme aplicação da lei máxima.
Podemos concluir que ainda há um longo caminho a ser percorrido até a pacificação dos entendimentos sobre o tema, contudo, diante da hierarquia judiciária, por ora prevalece o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal que afasta o reconhecimento de vínculo empregatício entre entregadores e empresas de aplicativos, podendo este sofrer, ou não, novas alterações nos próximos meses.
22 de janeiro de 2024