O dia 20 de novembro, quando é comemorado o Dia da Consciência Negra no Brasil, é uma oportunidade para se refletir sobre o contexto histórico que gestou desigualdades sociais, cujos reflexos são visíveis até os dias atuais. É o que se propõe no breve resgate histórico deste artigo.
Entre 1530 e 1560 iniciou-se a utilização de mão de obra escravizada no Brasil, com a predominância do uso exploratório e sem consentimento da força de trabalho de pessoas negras e povos originários. Esse procedimento foi praticado por aproximadamente três séculos e meio, até 1888, quando foi assinada a Lei Aurea, que determinou a interrupção e cessação da escravidão em nosso País.
A promulgação da referida Lei não colocou um fim na opressão e na desigualdade das pessoas negras que foram escravizadas e ganharam a sua liberdade. Por isso, é de suma importância que seja feita uma reflexão sobre o rumo que a nação tomou após a abolição da escravidão, analisando a evolução da legislação desde então, conforme será detalhado adiante.
Na história da nossa pátria, a liberdade desse segmento da população, sob o aspecto legalista, é recente, prevista há apenas 135 (cento e trinta e cinco) anos, ou seja, em período muito menor do que a fase escravocrata, que perdurou por volta de 350 (trezentos e cinquenta) anos. Apenas à guisa de curiosidade, cerca de 4,9 milhões de escravos foram transportados em navios negreiros para o Brasil.
O Decreto nº 528/1890, promulgado nos primeiros anos da República e logo após a abolição da escravidão, previa que uma pessoa vinda da Ásia ou do Continente Africano, para fixar residência em território nacional, precisaria sujeitar-se a uma autorização feita pelo Congresso Nacional. Em outras palavras, tal Decreto ratificava maior resistência do Brasil à recepção de pessoas oriundas dos dois Continentes, sendo institucionalizado um tratamento não isonômico, verdadeira “barreira de entrada” para o ingresso de estrangeiros no solo brasileiro.
Tal posicionamento foi reforçado nos estertores do Estado Novo, mediante o Decreto nº 7.967/1945, o qual regia que todo estrangeiro poderia ingressar no País com o objetivo de residir. No entanto, determinou a submissão da admissão a algumas condições, tendo por objetivo expresso “a necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia”.
O que se observa é que as leis e estruturas oficiais, mesmo após a abolição da escravidão, de forma indireta ou até mesmo direta, dificultavam a promoção da igualdade social.
Sob a égide da República Populista de 46, foi editada, em 03 de julho de 1951, ou seja, 63 (sessenta e três) anos após a abolição da escravatura, a Lei nº 1.390, por meio da qual se tornou contravenção penal a prática de discriminação racial. Embora essa lei possa ser considerada emblemática, uma sinalização de que o Estado estaria disposto ao combate à discriminação racial, não se localiza, na base dados de julgados do Supremo Tribunal Federal nenhuma decisão com esse fundamento1.
Após o fim da ditadura militar, já na fase da Nova República, em 1988, foi promulgada a atual Constituição Federal, a qual tem como um dos objetivos fundamentais “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, conforme pode ser observado no artigo 3º, inciso III. A Carta Magna, que enuncia diversos direitos e garantias fundamentais, intitulada por isso de “Constituição Cidadã”, é primordial na evolução da busca pelo combate ao preconceito, visando a promoção da justiça e da igualdade social.
Posteriormente, foi promulgada a Lei nº 7.716/1989, por meio da qual restou determinado que racismo é crime e não mais apenas uma contravenção penal, como anteriormente estabelecido.
Em 2003, a Lei nº 10.639 determinou que todas as escolas (públicas ou particulares) incluíssem na grade de ensino a história e a cultura afro-brasileira e africana, bem como a inclusão do Dia da Consciência Negra como parte do calendário escolar.
Desde então, para o ensino fundamental e médio, deve estar previsto nos respectivos conteúdos programáticos o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional. Ao incluir essa temática na base curricular, a referida lei propiciou um campo maior para a reflexão da construção histórica brasileira, sob outros olhares não hegemônicos, com o fim de resgatar “a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”.
O Dia da Consciência Negra foi instituído em novembro de 2011 por meio da lei nº 12.519, sendo definida a comemoração anual no dia 20 de novembro, tendo em vista que foi a data da morte do Zumbi dos Palmares, um dos maiores símbolo da resistência contra a escravidão. Seguiram-se as iniciativas de alguns Municípios em estabelecer essa data como feriados locais, a exemplo das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Atualmente, por meio da Lei Estadual nº 17.746, a data foi estabelecida como feriado em todo o Estado de São Paulo a partir de 2023.
Após este breve contexto histórico da legislação, vislumbra-se que a Constituição Federal de 1988 vem exercendo um papel muito importante para resguardar a isonomia de direitos, assegurando a existência de uma sociedade livre, justa, solidária, sem preconceitos de origem, raça e outras formas de discriminação. No entanto, não se pode esperar que nenhuma norma faça nascer, por si só, ou como um presente, conquistas sociais tão importantes e que demandam luta para serem concretizadas. Como diria o poeta Carlos Drummond de Andrade, “As leis não bastam. Os lírios não nascem das leis.”
Assim, 20 de novembro é uma data que destaca a importância do debate acerca do racismo e das formas de combate à discriminação, especialmente na luta para a busca da igualdade e da inclusão social, sendo certo que a reflexão sobre o contexto histórico e a lacuna temporal da desigualdade social e do preconceito, infelizmente presente até os dias atuais, não devem se limitar apenas a um dia. O esforço na busca da dignidade e inclusão social precisa ser revisitada e aplicada initerruptamente.
São Paulo, novembro de 2023.
Laura Mendonça Farias e Raquel Ribeiro Santos são Advogadas Cíveis e membros do Comitê ESG - Sustentabilidade, Equidade e Diversidade de Trigueiro Fontes Advogados.
1 Pesquisa realizada em 16.11.2023 , com as palavras chave “1.390” e “discriminação” e “racial”. Embora julgados muito antigos não integrem essas bases de dados, o resultado igual a zero é um indício de baixa efetividade dessa lei.