A estabilidade provisória da trabalhadora vítima de violência doméstica e familiar.
Bruno Rodriguês de Freitas

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou uma pesquisa apontando que os registros de violência doméstica aumentaram sensivelmente no Brasil durante o período de isolamento ocorrido na pandemia da Covid-19. Como resultado, a pesquisa “Violência Doméstica Durante Pandemia de Covid-19”, realizada nas redes sociais, indica que os desentendimentos entre casais aumentaram 431% entre fevereiro e abril de 2020.1

Já em levantamento realizado pelo Instituto DataSenado em 2021, em parceria com o Observatório da Mulher, constatou-se que 68% das brasileiras conhecem uma ou mais mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar, enquanto 27% declaram já ter sofrido algum tipo de agressão por um homem.2

Em nosso ordenamento jurídico, a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida popularmente como “Lei Maria da Penha”, foi um marco legislativo histórico neste assunto, pois criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher – seja física, psicológica, moral, sexual ou patrimonial -, trazendo às mulheres vítimas de violência algumas garantias, inclusive no âmbito do contrato de trabalho, a exemplo da estabilidade no emprego, que é objeto de análise no presente artigo.

Com efeito, dentre as medidas protetivas indicadas na lei para preservar a integridade física e psicológica da mulher em situação de violência, o juiz pode assegurar a manutenção do vínculo trabalhista por até seis meses, quando se mostrar necessário o afastamento da vítima, assim como pode assegurar o acesso prioritário à remoção, quando a mulher for servidora pública, integrante da administração direta ou indireta (artigo 9º, §2º, incisos I e II).

No que se refere ao afastamento do trabalho e consequente vedação de rescisão contratual, como depende de um provimento jurisdicional, a mulher em situação de violência deve procurar a tutela adequada perante o Juízo da Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar ou, na falta deste, perante o Juízo Criminal - já que não se trata de matéria trabalhista, apesar de afetar diretamente o contrato de trabalho -, demonstrando a necessidade de aplicação da medida em virtude dos riscos à sua integridade.

A omissão legislativa sobre a natureza jurídica do afastamento em questão, aliada à frívola casuística envolvendo o tema perante a Justiça do Trabalho, dão ensejo a uma grande divergência de entendimentos a respeito do assunto, sobretudo no que tange aos efeitos sobre o contrato de trabalho e no que pertine à responsabilidade pelo pagamento da remuneração da trabalhadora.

Há uma corrente de entendimento no sentido de que tal afastamento teria a natureza de interrupção do contrato de trabalho, e que caberia ao empregador a responsabilidade pelo pagamento dos salários da trabalhadora e demais verbas contratuais durante o período de afastamento, em virtude da função social do empregador.

Em outra direção, o entendimento que nos parece mais justo se posiciona no sentido de que o afastamento teria a natureza de suspensão do contrato de trabalho, em que há a cessação das obrigações das partes, tanto da empregada (de prestar labor), como do empregador (de efetuar o pagamento dos salários). Isso porque, por se tratar de situação de força maior, não deveria o empregador assumir o ônus excessivo de efetuar o pagamento dos salários da empregada, além de outras verbas e benefícios contratuais, numa conjuntura à qual não deu causa e que é alheia ao contrato de trabalho. 

E diante da ausência de previsão legal sobre a responsabilidade pelo custeio da remuneração da empregada afastada, é preciso se valer da interpretação teleológica da norma, ou seja, da finalidade do dispositivo legal, que objetiva proteger a mulher de maneira ampla e, portanto, não pode deixá-la desamparada financeiramente.

Aliamo-nos à corrente que pensa caber ao Estado, por meio da seguridade social, assumir o ônus financeiro do afastamento dessa empregada, dado o seu dever de assegurar assistência mínima aos que se encontram em situação de vulnerabilidade, nos termos do artigo 194 da Constituição Federal. Isso por intermédio da concessão do benefício previdenciário de auxílio-doença, já que, em muitos casos de violência, a empregada se submete a traumas psicológicos, depressão, síndromes e lesões de diversas naturezas.

Nesse sentido, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em decisão proferida em 2019, determinou que o INSS deve arcar com a subsistência da mulher afastada do trabalho que for vítima de violência doméstica. Para a referida Turma do STJ, o afastamento tem natureza de interrupção do contrato de trabalho e, analogicamente, a mulher teria direito ao auxílio-doença, sendo os 15 primeiros dias a cargo da empresa e o período posterior de responsabilidade do INSS (o número do julgado da Sexta Turma do STJ não foi divulgado em razão de segredo de justiça).

Em linhas gerais, considerando as graves consequências que a violência doméstica e familiar contra a mulher traz para a sociedade, urge a necessidade de definição, pelo legislador, do modo de amparo financeiro à trabalhadora afastada, garantindo-se de forma plena os direitos estabelecidos na Lei Maria da Penha.

 

  São Paulo, 13 de junho de 2022.

Bruno Rodriguês de Freitas é integrante de Trigueiro Fontes Advogado em São Paulo.

 

1 Referências:

 https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/05/violencia-domestica-covid-19-v3.pdf

 

2 https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2021/12/09/pesquisa-violencia-domestica-e-familiar-contra-a-mulher_relatorio-final.pdf

 

 

 

 


Voltar para artigos

Em conformidade com a LGPD, utilizamos apenas cookies essenciais e tecnologias semelhantes de acordo com a nossa Política de Privacidade e, ao continuar navegando, você fica ciente e concorda com o seus termos. Trigueiro Fontes Advogados se reserva o direito de atualizar esta Política de Privacidade sem qualquer aviso prévio. Clique Aqui para Saber Mais