Entende-se como direito das sucessões o conjunto de normas que regulamentam a transmissão patrimonial de uma pessoa para a outra em decorrência da morte. Assim, a sucessão possui o objetivo de regulamentar as relações sociais advindas com a morte de alguém, determinando o que e quem irá suceder, recebendo os direitos e as obrigações decorrentes do patrimônio deixado pelo falecido.
Com o falecimento, os deveres e os bens do de cujus são transmitidos aos herdeiros, seja essa transmissão por disposição de última vontade como no caso do testamento, como também pelas imposições legais (ordem sucessória) e, na ausência dessas deliberações, que seguirá todas as determinações do Código Civil.
É importante destacar que a herança é um direito fundamental previsto no artigo 5º, XXX da Constituição Federal, bem como o direito sucessório possui dimensão social, cuja finalidade é garantir a segurança da família, mantendo o patrimônio na família ou à quem for indicado em testamento, evitando a perda patrimonial.
Contudo, nos dias atuais, estamos diante de um novo tipo de propriedade, os chamados bens digitais, tais como sites, blogs, direitos sobre músicas, filmes, livros, entre outros. Da mesma forma se dá com as redes sociais que, dependendo do indivíduo, é tão importante quanto qualquer outro bem físico, inclusive na geração de frutos. Todos estes exemplos fazem parte do que se considera como Acervo Digital.
Ocorre que, como ainda não existem leis que versem especificamente sobre a herança dos acervos digitais, o sistema jurídico e a sociedade estão diante de uma lacuna legislativa, tendo em vista que o vasto crescimento tecnológico e a rentabilização que as tecnologias oferecem, exigem amparo legal. Assim, surge a questão: o que fazer e como transmitir estes bens digitais, quando a pessoa falece e não declara a sua última vontade?
Existem projetos de lei em tramitação que buscam alterar o Código Civil a fim de regulamentar a herança digital, a exemplo do Projeto de Lei nº 5820/2019, de iniciativa do Deputado Elias Vaz (PSB/GO) e do Projeto de Lei nº 6468/2019 de autoria do Senador Jorginho de Mello (PL/SC). Tais projetos têm basicamente o mesmo fundamento, qual seja, a herança digital deve seguir os moldes da herança tradicional, isto é, respeitando o princípio da saisine, transferindo-se, automaticamente, aos herdeiros e legatários do de cujus.
Entretanto, muito se discute sobre a constitucionalidade destas propostas, em razão de uma suposta violação aos direitos da personalidade. Além disso, questiona-se qual seria o meio mais apropriado para a indicação dos herdeiros digitais.
Alguns países já deram a devida atenção a este tema e elaboraram normas específicas que regem a transmissão dos bens digitais, como, por exemplo, no ano de 2015, a Comissão de Uniformização de Leis (Uniform Law Comission – ULC) dos Estados Unidos, formulou um documento denominado de Uniform Fiduciary Access To Digital Assets Act – UFADAA (Lei Uniforme de Acesso Fiduciário a Ativos Digitais), cujo objetivo era padronizar a abordagem jurídica do patrimônio digital, indicando que caberia a cada Estado Federado aprovar ou não o destino dos bens digitais em caso de morte ou incapacidade do titular.
Atualmente, diante de tantos progressos e evolução da ciência cibernética, é cada vez mais comum que parte do patrimônio das pessoas seja digital, contando com bens economicamente valoráveis e bens simplesmente sentimentais, que exprimem a personalidade de seu titular.
Tanto assim é, que hoje existem pessoas que exercem atividade remunerada exclusivamente pela criação de blogs, sites e perfis em redes sociais, os famosos “digital influencers”, que são constantemente contratados pelas mais variadas empresas para que divulguem suas marcas nesses canais.
Desta forma, as constantes evoluções ocorridas na sociedade clamam pela criação de legislação, para que se regule a herança digital de forma precisa.
O Poder Legislativo deverá regulamentar este tema, visto que o Judiciário necessita de amparo legal para solucionar, de maneira uniforme, os conflitos que vêm surgindo. Para tal fim, é preciso a elaboração de Proposta de Lei que conceitue herança digital, determine a distinção entre os bens digitais de valor econômico e meramente afetivos, possibilite a transmissão do conteúdo personalíssimo mediante testamento ou outro documento que comprove a vontade do de cujus e os possíveis atos a serem realizados pelos sucessores quanto ao acervo digital herdado.
19 de agosto de 2022.
Natália Vital Carvalho é advogada de Trigueiro Fontes Advogados em São Paulo.