A bem sabida e fundamentada insatisfação da iniciativa privada com a excessiva intervenção do Poder Público na criação e desenvolvimento de suas atividades sempre gerou considerável insegurança no particular, o qual, diante de entraves burocráticos e legais, se vê, não raro, prejudicado e desestimulado à prática do empreendedorismo.
Assim, especialmente diante do presente quadro de crise econômica no Brasil, foi criada a Medida Provisória nº 881, de 2019, convertida na Lei nº 13.874, sancionada em 20/09/2019, com a finalidade de fomentar o crescimento, desenvolvimento e geração de emprego e renda com foco na iniciativa e prática liberal do empreendedorismo privado.
Conhecida como Lei da Liberdade Econômica, a Lei nº 13.873/19 resgata o conceito liberal clássico de economia para propor relativo afastamento da intervenção estatal das relações privadas, flexibilizando normas de criação e manutenção da atividade empreendedora. É objeto deste artigo apresentar a parte da Lei nº 13.873/19 criada para trazer maior segurança jurídica à manutenção judicial da atividade privada, relativamente à implementação de nova sistemática de interpretação do maior instrumento de manifestação da autonomia privada: o contrato.
Pois bem, a interpretação ganha especial relevo quando a lei ou o contrato possuem omissões, imprecisões e até contradições que permitem o uso das fontes do direito (em especial, os princípios gerais de direito) para direcionar a solução de eventual conflito travado em razão dessa insuficiência ou ambiguidade. É nesse contexto que ocorre a intervenção do Poder Público na relação entre as partes, por meio do processo judicial, presidido pelo(a) juiz(a) de direito, que é o agente público dotado de legitimidade para fazer o controle judicial da atividade econômica.
Um contrato de mútuo bancário, por exemplo, que tem sua taxa de juros remuneratórios estabelecida em patamar significativamente superior à taxa média de mercado, é considerado abusivo, ou seja, configura excessiva onerosidade e, portanto, é passível revisão pelo Poder Judiciário[1]. Observa-se, no caso, evidente conflito entre o princípio da autonomia privada, que traria a premissa de que o contrato deve ser cumprido porquanto firmado livremente entre partes capazes, e o princípio da função social do contrato, que, diante de excessiva onerosidade, concluiria pela abusividade e revisão da cláusula, visto que não há igualdade entre as partes e distribuição equilibrada de custos e benefícios.
Outro ponto que demonstra esse conflito de princípios no exemplo citado acima é a abertura deixada para o julgador mensurar o patamar significativamente superior à taxa média de mercado.
Sobre o critério para se considerar abusiva a taxa de juros remuneratória, o próprio STJ já firmou diversos posicionamentos: uma vez e meia[2], ao dobro[3] ou ao triplo[4] da taxa média de juros. Ainda, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul já firmou entendimento de ocorrência de abusividade em patamar superior a 20% da taxa média de mercado[5]. Temos também entendimento nos Tribunais de Justiça dos Estados do Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro no sentido de que o mero fato de estar acima da taxa média de mercado já é suficiente para revisar a taxa de juros. Por fim também há posicionamento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no sentido de que não seria cabível sequer a revisão da taxa de juros do contrato, visto que a parte que contratou o empréstimo concordou com suas cláusulas por livre e espontânea vontade.
E você que lê este artigo, em qual patamar entenderia abusiva ou não a taxa de juros?
Ora, evidente, no exemplo citado, certo nível de discricionariedade interpretativa e valorativa do julgador no momento de aplicar critérios para revisar, ou não, o contrato, tanto pelos Tribunais Estaduais quanto pelo Superior Tribunal de Justiça. Essa intervenção prejudica a atividade empresarial, exatamente porque se torna impossível a avaliação e previsão dos riscos de se ter revisado em Juízo eventual contrato inerente ao desenvolvimento da atividade empresarial, o que mereceu atenção do legislador na promulgação da Lei nº 13.874/19.
Criando dispositivos interpretativos que prestigiam a independência, o senso de responsabilidade das partes e o cumprimento dos contratos, prevendo a revisão apenas de maneira excepcional e limitada[6], bem como estabelecendo a prevalência da intervenção mínima e subsidiária do Estado, mesmo as de ordem pública[7], sobre o exercício das atividades econômicas[8], a Lei nº 13.874/19 representa exatamente um esforço para apresentar a resolução de dúvidas hermenêuticas de modo a prestigiar a autonomia da vontade[9].
Porém, ainda é cedo para dizer acerca do alcance e efetividade da Lei nº 13.874/19 no âmbito do Poder Judiciário e seu impacto na economia. Trata-se, em realidade, de esforço do legislador para criar um costume de responsabilidade e independência, evidentemente, com o fim de permitir às partes máxima segurança jurídica nas relações negociais.
São Paulo, setembro de 2020.
Eduardo Costa Morelli, advogado de Trigueiro Fontes Advogados em Porto Alegre
Bibliografia:
Lei 13.874/19 – Lei da Liberdade Econômica: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm
Sumário Executivo da Medida Provisória nº 881, de 2019 encontrado na Página do Congresso Nacional contendo informações sobre a Medida Provisória nº 881, de 2019, que virou a Lei 13.874 de 20/09/2019, conhecida como Lei de Liberdade Econômica: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/136531
(REsp 1061530/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/10/2008, DJe 10/03/2009)
(REsp 271.214/RS, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, Rel. p/ Acórdão Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 12/03/2003, DJ 04/08/2003, p. 216)
(REsp 1036818/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/06/2008, DJe 20/06/2008)
(REsp 971853/RS, Rel. Ministra ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 06/09/2007, DJe 24/09/2007)
(TJSP; Apelação Cível 1022054-98.2018.8.26.0005; Relator (a): Marcos Gozzo; Órgão Julgador: 23ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional V - São Miguel Paulista - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 16/11/2016; Data de Registro: 26/11/2019)
(Apelação Cível Nº 2017.006322-4, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RN, Relator: Amílcar Maia, Julgado em 04/06/2019)
(Apelação Cível Nº 0017099-16.2017.8.19.0023, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RJ, Relator: Cláudio Luiz Braga Dell’Orto, Julgado em 27/11/2019)
[1] (REsp 1061530/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/10/2008, DJe 10/03/2009)
[2] (REsp 271.214/RS, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, Rel. p/ Acórdão Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 12/03/2003, DJ 04/08/2003, p. 216)
[3] (REsp 1036818/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/06/2008, DJe 20/06/2008)
[4] (REsp 971853/RS, Rel. Ministra ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 06/09/2007, DJe 24/09/2007)
[5] (Apelação Cível, Nº 70082507245, Décima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aymoré Roque Pottes de Mello, Julgado em: 25-09-2019)
[6] Art. 7º da Lei 13.874/19, que incluiu o Art. 421-A, III, no Código Civil
[7] Art. 3º, VIII, da Lei 13.874/19
[8] Art. 2º e Art. 7º da Lei 13.874/19, que incluiu o 421, parágrafo único, no Código Civil)
[9] Art. 3º, V, da Lei 13.874/19