A determinação de Estado de Calamidade Pública pelo Governo Federal, conforme previsão constitucional[1], implica na relativização de alguns direitos com o fito de controlar ameaças contra ordem pública ou paz social. Dado o cenário atual decorrente da pandemia do COVID-19, as medidas decorrentes da decretação do mencionado estado de calamidade[2] estarão aptas a conferir maior proteção à saúde pública e maior intervenção do Estado na economia, com o objetivo de minimizar os efeitos de uma recessão interna em decorrência da propagação do coronavírus.
Na prática, no que diz respeito à economia, o governo poderá gastar mais recursos ao intervir no mercado para, dentre outras questões, garantir a manutenção dos empregos e evitar a quebra de empresas. Além disso, a União fica dispensada de atingir a meta de resultado fiscal prevista para este ano[3], por consequência, sobretudo, da queda na arrecadação.
Embora a decretação de Calamidade Pública não isente o governo de respeitar o teto orçamentário, ela prevê a concessão de créditos extraordinários que poderão ser utilizados em gastos relacionados ao coronavírus[4], como já havia sido feito recentemente com a liberação de R$ 5 bilhões por meio de Medida Provisória nº 924/20[5].
Com relação às medidas tomadas pelo governo para proteção da saúde pública, espera-se que, além dos investimentos na área da saúde, haja, como já vem ocorrendo, maiores restrições para a população, evitando-se aglomerações e grande circulação de pessoas nas ruas do país, de forma a diminuir a proliferação do vírus.
Há de se ressaltar que tais restrições poderão ser executadas de forma coercitiva pelos órgãos responsáveis em caso de descumprimento. Neste ponto se insere eventual atuação governamental determinando a internação compulsória, a proibição do exercício do direito de reunião, a quarentena forçada de uma determinada localidade e a própria responsabilização penal do indivíduo[6].
Alguns Estados já determinaram algumas medidas limitantes[7], como a suspensão ou impedimento do funcionamento de estabelecimentos, como escolas, universidades, restaurantes, bares, shoppings, academias e eventos, entretanto, com a decretação do Estado de Calamidade Pública, isso poderá ser feito numa escala nacional pela União.
Destaca-se que, com relação a essas medidas excepcionais, a própria Constituição Federal dispõe sobre a responsabilização do agente executor caso haja algum excesso ou dano ao particular[8] no decorrer do período estabelecido, deixando claro que há limites para atuação do Poder Público, ainda que em situações excepcionais.
Ao declarar o Estado de Calamidade Pública, o Decreto deverá especificar, além do prazo para sua vigência e área de abrangência, as medidas que serão tomadas pelo Poder Público[9], sobretudo no que diz respeito às restrições à população, tendo em vista que o direito constitucional de ir e vir está de certa forma sendo (legitimamente) violado.
Por fim, no que se referem aos aspectos penais, é importante esclarecer que o artigo 268 do Código Penal estabelece que “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”, implica em punição com detenção de 1 mês a 1 ano, e multa. Dessa forma, ainda que não traga resultado concreto na disseminação do vírus, e, desde que praticado dolosamente, o mero descumprimento da norma é considerado crime.
Além disso, o Código Penal também traz circunstâncias que sempre agravam a pena, sendo uma delas o cometimento de delito em ocasião de calamidade pública, conforme estabelece o art. 61, inc. II, alínea “j”[10]. Assim, o Código traz a possibilidade de agravamento de pena àquele que se aproveita de uma situação de calamidade pública para a prática de crime.
São Paulo, março de 2020
Renata Freire de Andrade Fonseca de Sousa, Lavínia Costa dos Santos e
Juliano Luca Domingos Pereira, são integrantes de Trigueiro Fontes Advogados em São Paulo.
[1] Art. 136 da Constituição Federal de 1988.
[2] O Senado aprovou, por unanimidade, em sua primeira sessão deliberativa remota, feita em 20/3/2020, o projeto de decreto legislativo (PDL 88/2020), que reconhece o estado de calamidade pública no país por causa da crise do coronavírus. Com isso, o governo poderá descumprir, até 31 de dezembro deste ano, a meta fiscal, que é de deficit de R$ 124 bilhões, e liberar mais recursos para o combate à covid 19. A sessão foi conduzida pelo senador Antonio Anastasia (PSD-MG), que colheu o voto de 75 senadores, que se manifestaram, por meio de chamada de vídeo ou telefônica certificada, favoravelmente ao relatório apresentado pelo senador Weverton (pDT-MA). Fonte: Agência Senado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2020/03/senado-aprova-decreto-que-reconhece-estado-de-calamidade-publica-no-pais. Acesso em: 20 mar.2020.
[3] Art. 65, inc. II da Lei Complementar nº 101 de 04 de maio de 2000.
[4] Art. 167, §3º da Constituição Federal de 1988.
[5]Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/645638-governo-libera-r-5-bilhoes-por-medida-provisoria-para-combate-ao-coronavirus/. Acesso em: 20 mar.2020.
[6] Artigo 286 do Código Penal.
[7] Decreto nº 64.879, que reconhece o Estado de Calamidade no Estado de São Paulo decorrente da pandemia do Covid-19, publicado no Diário Oficial no dia 21 de março de 2020; Decreto nº 46.973 de 16 de março de 2020, reconhece a Situação de Emergência na saúde pública do Estado do Rio de Janeiro; e Decreto nº 19.550 publicado no Diário Oficial em 20 de março de 2020, que dispõe sobre medidas temporárias para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus no âmbito do Estado da Bahia.
[8] Arts. 136, §1º, inc. II e 141 da Constituição Federal de 1988.
[9] Art. 136, §1º da Constituição Federal de 1988.
[10] Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: j) em ocasião de incêndio, naufrágio, inundação ou qualquer calamidade pública, ou de desgraça particular do ofendido;