Diante da crise sanitária causada pela pandemia decorrente da COVID-19 e da consequente decretação do estado de calamidade pública pelo governo federal (Decreto nº 6, de 20 de março de 2020), a Advocacia Geral da União (AGU) ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6357/DF requerendo, basicamente, a flexibilização da aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).
É possível afirmar que, se analisadas em conjunto, os principais objetivos da LRF e da LDO consistem em estabelecer normas gerais, planejamento, diretrizes e limites para os gastos públicos, objetivos esses a serem perseguidos e cumpridos pela Administração Pública com fundamento na Constituição Federal.
Com foco especial nos limites fixados na LRF, o cenário decorrente da pandemia da COVID-19 – absolutamente inédita, imprevisível e recente – afeta, diretamente, o cumprimento das metas fiscais pela Administração Pública. Faz-se necessário um plano contingencial de combate ao novo coronavírus e de proteção da população vulnerável à doença, fato que gera dispêndios de recursos públicos para além dos limites então fixados na LRF e nos gastos estimados na LDO.
Na referida ADI nº 6357/DF, a AGU requereu o afastamento da incidência dos artigos 14, 16, 17 e 24 da LRF, bem como do artigo 114 da LDO.
O artigo 14 da LRF traz exigências em relação a incentivos ou benefícios de natureza tributária da qual decorra renúncia de receitas. Com isso, toda renúncia de receita deve ser acompanhada de uma estimativa de impacto orçamentário.
O artigo 16 da LRF determina que a criação ou expansão de gastos devem vir acompanhados de estimativa de impacto orçamentário no exercício em que entrar em vigor e nos dois subsequentes. Esse artigo tem sua composição centralizada na execução.
Já o artigo 17 da LRF determina que os atos que criarem ou aumentarem despesas devem demonstrar a origem dos recursos para seu custeio, ou seja, deverá haver um equilíbrio entre receitas e despesas. Com caráter formal, o artigo é condição prévia para a proposição de Lei, Medida Provisória ou Ato Administrativo.
O artigo 24 da LRF, por sua vez, trata sobre a seguridade social, estabelecendo que, para criação ou majoração de qualquer benefício relativo ao tema, deve respeitar as condições do artigo 17 da LRF.
O artigo 114 da LDO, por fim, estabelece que qualquer propositura legislativa ou emenda que autorize a diminuição de receita ou o aumento de despesas, deverá estar acompanhada de estimativas desses efeitos no exercício em que entrarem em vigor e nos dois exercícios subsequentes, de maneira que seja possível a adequação orçamentária.
O princípio do equilíbrio orçamentário, um dos basilares da LRF, busca dar uma realista relação entre receitas e despesas públicas. Com isso, é um meio eficaz de limitar os gastos governamentais e dar cumprimento às metas fiscais.
Ocorre que, em situações de calamidade pública, a lógica decorrente de tal princípio pode impedir a devida assistência à população. E foi esse o entendimento da AGU, que, buscando assegurar o mínimo existencial, ingressou com a ADI nº 6357/DF requerendo o afastamento das condicionantes contidas nos dispositivos legais acima mencionados para as despesas necessárias ao enfrentamento da calamidade pública causada pela propagação da COVID-19.
Nesse contexto, o Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão cautelar histórica, permitiu que fosse afastada “a exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias em relação à criação/expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento do contexto de calamidade gerado pela disseminação de covid-19".
Os direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal foram os principais fundamentos utilizados pelo Ministro como embasamento de sua decisão. Isso porque o afastamento excepcional das referidas normas não tem qualquer relação com oportunismo político, possuindo apenas a finalidade de garantir o mínimo existencial aos cidadãos brasileiros.
Com isso, verifica-se que equilíbrio orçamentário constitui princípio jurídico a ser perseguido pela Administração Pública. Contudo, o princípio deve conviver e integrar-se a outros tantos (lógica de ponderação), de modo que não seja impeditivo ao cumprimento do dever do Estado de oferecer aos cidadãos, sobretudo em cenários de crise de saúde pública, os serviços básicos que constituem a própria razão da existência da máquina estatal.
Dessa forma, a partir da referida decisão, a União e os demais entes federativos poderão, de forma excepcional e temporária, criar ou expandir gastos relacionados ao combate da COVID-19, sem a necessidade de demonstrar a origem dos recursos para custeio ou realizar qualquer estimativa de impacto orçamentário.
A decisão, ainda que proferida em sede cautelar, certamente já gera impacto positivo - diante do volume de recursos necessários e urgentes - para a adoção das medidas de combate à pandemia. No entanto, cria, em paralelo, um sinal de alerta ao setor privado que venha formalizar contratos com a Administração Pública.
Sob a ótica do controle da Administração Pública, em especial do controle de recursos e gastos públicos, os órgãos de controle – com destaque aos Tribunais de Contas e ao Poder Judiciário – não irão se eximir de, mais cedo ou mais tarde, analisar detalhadamente o montante de recursos gastos, o preço pago por produtos e/ou serviços, dentre outras questões.
Assim, a prudência é necessária às empresas que figurarem como contratadas em contratos administrativos firmados no contexto da pandemia. Amanhã ou depois, caso irregularidades sejam constatadas nos contratos firmados, todos os envolvidos nas contratações poderão ser responsabilizados se verificadas irregularidades, sofrendo a penalização prevista na legislação aplicável.
Dentre as possíveis penalizações, as Ações de Improbidade Administrativa merecem destaque, uma vez que, apesar de não ser muito divulgado, esse é o meio utilizado para apurar e punir a prática de atos ilícitos na Administração Pública, além de buscar ressarcir o Erário Público. Cabe mencionar ainda que a procedência dessas ações produz efeitos no âmbito civil, penal e administrativo, o que causa impactos negativos de reputação, compliance e financeiro às empresas privadas.
Ivana Eduarda Dias Arantes
Integrante de Trigueiro Fontes Advogados no Rio de Janeiro